Amigos de longa data, Felipe Marino e Paula Hering, estreiam o projeto Que coisa é essa, o Amô? com disco homônimo que traz onze faixas compostas por eles. O primeiro single, Céu Roxo, estreou com clipe em junho e hoje (17 de agosto), além do lançamento do álbum nas plataformas streaming, o duo divulga o vídeo da faixa Canção de Esquecer Alguém, dirigido por Rafael Giacondino e filmado a bordo dos trens da linha turquesa da CPTM de São Paulo.
Ao longo do álbum, as músicas trazem relatos e lembranças de momentos vividos pela dupla, entre ilusões e paixões. Pode-se dizer que é quase um diário da geração millenial embalado por uma trilha sonora pra lá de especial, com forte influência de canções populares. “O Que coisa é essa, o Amô? me inspirou a pesquisar guitarra na música brasileira. Procurei e, principalmente, ouvi atentamente as guitarradas paraenses, os mestres, o carimbó, Pinduca e, também, logicamente, o lambada das quebradas de Vieira e seu conjunto. Foi só aí que entrevi qual o papel possível da guitarra no Que coisa é essa, o Amô?. Não que eu tenha me inteirado e executado qualquer coisa próxima ao que os mestres da guitarrada fizeram, procedi, com muito respeito, à la Oswald de Andrade: degluti, devorei, vomitei de volta pro mundo a guitarra que me cabia, a guitarra que eu podia fazer. Me senti, então, desapegado e inspirado o suficiente para ressignificar esse instrumento para mim”, conta Felipe que, além de Mestre Vieira, também mergulhou nas obras tropicalistas de Rogério Duprat e nos acordes de Caetano Veloso para se inspirar nos arranjos das canções.
Aliás, quem assina a produção musical é o próprio Felipe, que estreia como produtor do disco, todo gravado por ele no estúdio montado em sua casa. “Gravei quase todos os instrumentos com um ‘desleixo’ salutar que aprendi vendo uma entrevista do QuestLove, na qual ele falava sobre tocar bateria. Numa tradução grosseira e, ainda, desacompanhada do contexto, seria o seguinte: ‘quanto mais desleixado você fizer, mais sincero e humano parecerá’. Isso mexeu comigo, mexeu com a maneira como eu quis e quero tocar, como eu gostaria que as coisas soassem e com o gingado, o balanço que cada canção poderia ter”, comenta Felipe que, além de compositor e produtor, também é cantor, multi-instrumentista autodidata e arquiteto. Já Paula, canta desde criança influenciada pela mãe, professora de piano, e participou do reality show do canal Multishow, Geleia do Rock, em 2009, quando despertou o interesse em seguir a carreira artística.
FAIXA A FAIXA
O disco abre com Erva Doce, música composta por Paula e pelo compositor Rafael Marino Arcaro, entre 2010 e 2012. Rafael é irmão de Felipe e foi parceiro do músico na banda Santa Maria da Feira, que tiveram no início dos anos 2000. “Erva Doce era uma canção que tinha apenas duas estrofes desesperançosas falando sobre o, quase certo, fim de uma paixão, e se tornou uma marchinha animada, cheia de alegria e esperança”, comenta Paula. A segunda música do disco faz jus ao título, pois, de fato, Fim de Fevereiro, foi composta por Felipe nesta época do ano em 2012. “Fiz a letra em um dia como qualquer outro, quando as coisas estão e parecem estar bem, sem que haja algo excepcional, que dê conta de explicar o por quê. E a vida, no fim das contas, se apresenta tão razoável, que cantarolar uma melodia qualquer parece óbvio e natural”, reflete Felipe. Além das já citadas, outra influência dos artistas é o grupo Orquestra Imperial e Felipe comenta que “na canção Fim de Fevereiro, assim como em tantas outras, acabei deixando frases sem muito nexo aparente com a música em si. São alguns resquícios de horas e horas gravando sozinho que, a partir de certo momento, me fazia começar a cantar com alegria qualquer coisa que vinha à cabeça. Uma dessas frases, fechando a segunda faixa do álbum, por acaso, é o título do disco da Orquestra Imperial: “Carnaval só ano que vem”.
Tão Raro também é composta por Felipe e entrega todo o seu amor a Caetano Veloso: “comecei a ouvir Caetano, de verdade, como quem aprecia e pesquisa, em 2006, depois de tê-lo visto em alguma programa na tv tocando ‘Rocks’. Lembro que fiquei abismado com a simplicidade e crueza daquilo tudo. Minha porta de entrada foi o ‘Transa’ de 72, depois o disco de 71, de 69, e de 68, todos intitulados ‘Caetano Veloso’, desembocando, logicamente, no tropicalismo do “tropicalia ou panis et circensis”. Foram só alguns anos depois com o lançamento de ‘Zii e Zie’ e, depois, do ‘Abraçaço’ que me atentei para relevância daquela produção no cenário musical recente brasileiro”. No som, o baixo marcado é quase uma resposta às frases vocais, enquanto a guitarra acompanha as notas do instrumento ao longo de toda canção, num registro bem mais agudo e abafado, parecendo ajudar o baixo a ritmar as notas. Também sob composição de Felipe, Bonde de Ser Feliz (Outro Love), ganhou este título do amigo do músico, Bruno Araújo, cujo alter ego é o ilustrador Walter Rego. “No início de 2012, ao terminar de mostrar essa canção para alguns amigos, ouvi alguém indagando sobre a letra: ‘- Afinal você diz: …que pra cada amor que morre outro LOVE há de nascer?’ E não era nada disso. Na verdade eu dizia, e ainda digo na música em um dos refrões: ‘que pra cada amor que morre, outro LOGO há de nascer’, mas o estrago já estava feito”, lembra Felipe. No arranjo da canção, percebe-se uma homenagem ao samba com violão e baixo compondo a harmonia, enquanto o embalo vem da percussão e voz.
Ainda em ritmo de samba, é a vez de Vontade de Sambar, composição de Paula: “esta música fala sobre pessoas, animais, cenas de filme, cenas inspiradoras nas ruas, enfim, boas coisas, experiências e sentimentos que provocam uma felicidade tão grande que a vontade que dá é sair dançando. Dançar como uma criança, livremente”, relata a compositora. Já sobre o arranjo, Felipe conta que a música foi primeiramente arranjada pelo seu irmão, Rafael, mas que a versão final recebeu uma roupagem de samba lento: “a bateria do primeiro ensaio deu lugar à percussão e adicionei o triângulo, que acabou contribuindo com o timbre agudo constante. O baixo, logicamente, impera, assim como a voz da Paula que, macia, desliza sobre todos os instrumentos”, pontua.
Na sequência, vem Canção de Esquecer Alguém, cujo clipe é disponibilizado hoje (17), junto com o álbum. A faixa fala sobre esquecer de se lembrar e se lembrar de esquecer. “O refrão veio primeiro, fiquei cantarolando e pensando sobre a letra ao mesmo tempo, refletindo sobre algumas lembranças. Não senti nem saudade, nem rancor, nada: foi mesmo constatação. Constatação alegre de que as coisas mudam, e nós também mudamos”, diz o compositor. Além disso, Felipe ressalta que o que mais gosta na música é da simplicidade intrínseca à letra e ao arranjo: “tudo nesse arranjo é simples, as harmonias são simples e as percussões acompanham alegremente e delineiam um gingado gostoso e totalmente despretensioso. Nada de roubar a cena, tudo é abraço, afeto”.
Quando Ele Passa, sétima faixa do disco, foi composta, inicialmente, para ser apresentada no Samba da Vela, que Felipe frequentou em 2011. Mas este não foi o destino da música, que, aliás, foi uma das primeiras composições do músico. “Quando refiz o arranjo e a gravação de Quando Ele Passa, depois de quase dois anos trabalhando, tocando, gravando, aprendendo e, principalmente, me sentindo mais à vontade com a liberdade e o isolamento, um tanto intimidadores, que gravar sozinho suscita, resolvi convidar meu irmão para fazer os teclados e um amigo, músico e produtor musical, que havia conhecido durante a feitura do disco, Eduardo Camargo (MAWU do selo RISCO), para tocar cavaquinho”.
A caminho do final do álbum, é a vez de Incerteza, uma das três canções do disco composta pelo irmão de Felipe, Rafael. O título da composição já diz tudo: incerteza. De fato, a canção versa sobre o fato inevitável de que a única coisa que podemos dar como certa é que não há certeza alguma. Na faixa, quem toca o violão é Rafael, “além de ser a única canção do disco que não toquei violão, também foi a única gravada de maneira bastante distinta: eu, dentro de um banheiro desativado improvisado de depósito para os instrumentos, tocando ganzá ao mesmo tempo que meu irmão gravava o violão da faixa no, também improvisado, estúdio. Em seguida, só para testarmos as vozes, peguei um microfone de karaokê e cantamos, eu e Paula em um único take. Pronto. Embora, tempos depois, tivéssemos feito outros takes de voz em microfones adequados e separados, algo naquele timbre meio tosco nos cativou de maneira definitiva”, lembra Felipe.
O Amor, também assinada por Rafael, fala da fluidez dos sentimentos enquanto os instrumentos atuam discretamente, texturizando a canção e dando espaços ao silêncio e vazio que vão permeando a música. O surdo, alterado digitalmente, emite um grave estranhamento profundo, como um coração batendo forte e lentamente. Já baqueta de cinco pontas vem raspando o aro do tamborim como fosse um reco reco, o violão vem enxuto e seco, enquanto a guitarra cria contrastes se mesclando ritmicamente ao fundo musical. A estranheza, então, se coloca de maneira mais acentuada no final, que traz um coro de vozes gravadas umas por cima das outras, em dissonâncias cantadas num registro estranho por cima de uma cadência cromática de acordes igualmente dissonantes.
Penúltima música do álbum e a primeira a ganhar clipe, Céu Roxo, fala sobre uma história de amor vivida por Rafael, responsável pela letra e canção. Já Felipe conta que uma grande referência para a música foi a marcha-rancho, “um tipo de marcha carnavalesca mais arrastada que, na minha intenção, daria conta, nos versos, de transmitir uma alegria quase que contida dessa revelação sobre a qual a letra versa. Os refrões receberam uma roupagem mais robusta com o grave dos dois djembês marcando alegremente uma marcha, agora, menos arrastada. A diferenciação bem marcada no início da parte b da canção, acentua ainda mais um grau de intimidade, de confissão, que Paula executa lindamente sendo acompanhada pela melodia leve de um teclado em uníssono”, conta. E para finalizar, o músico usou do recurso de duplo refrão, “clássico de tantos finais de canções, sendo, o segundo deles, cantado de maneira dobrada, como vozes de apoio mais abertas, transbordando uma alegria que cessa, abruptamente, com a cadência melancólica que fecha a canção”, explica.
Já a música que fecha o disco é Que Toda Tristeza, que começou a ser composta no início de 2013, enquanto Felipe assistia “Partido Alto”, filme de Leon Hirszman. A frase da primeira canção que aparece no filme, “Testamento do Partideiro” cantada e composta pela mestre Candeia, dizia: “Mas se houver tristeza que seja bonita…” e inspirou o compositor a divagar sobre a tristeza. “Acredito ser possível desfrutar da vida plenamente, na felicidade ou na tristeza; afinal, pode-se encontrar pequenas alegrias em momentos difíceis, sendo, de certa forma, a felicidade e a tristeza mutuamente ‘necessárias’. Além disso, a meu ver, a felicidade só pode ser concebida e sentida como tal quando adentramos um estado sem antes e depois, sem passado, nem futuro, porque nenhuma felicidade poderia ser plena se, a todo instante, fôssemos conscientes de tudo”, reflete Felipe. Para o verso da canção, a inspiração vem de Guimarães Rosa: “já havia tentado algumas ideias e, todas elas, me pareciam apenas “encher linguiça”. Foi então que, numa dessas tentativas, me lembrei de uma frase que tinha certeza absoluta de havia lido no “Grande sertão: Veredas”, mas que depois, ao pegar no livro, vi que era uma paráfrase: gente é pra brilhar não pra morrer de fome”, e, assim, Felipe fecha o disco.