O Música e Cinema teve o prazer de conversar com o diretor Julio Wong, que recentemente lançou Mal Passado, um curta-metragem de total destaque no cenário nacional, contando com a presença dos renomados atores José Mojica Marins e Marcelo Marrom. Com este trabalho, Julio vem recebendo diversas indicações a prêmios e um reconhecimento gigantesco como um dos diretores mais emergentes do cenário nacional.
Entrevista com Julio Wong
Acompanhe a conversa do Música e Cinema com este grande diretor:
Leonardo Caprara: Julio, primeiramente é um prazer ter esta oportunidade, o Música e Cinema agradece a atenção. Então, como você começou no mundo do cinema? Quando decidiu que seguiria no ramo?
Julio Wong: Eu comecei no cinema como figurante para o José Mojica Marins! Fui um dos mendigos na vinheta de abertura da mostra retrospectiva completa da obra dele realizada aqui em São Paulo pela Cinemateca e pelo CCBB.( http://youtu.be/x1G1C0mQagE ) Nunca tive intenção de ser ator, mas quando descobri que o Mojica estava selecionando figurantes não queria perder a oportunidade de estar em um set com ele.
Eu sempre tive vontade de trabalhar como roteirista, durante a infância meu interesse era escrever roteiros para quadrinhos. Me voltei para o cinema na adolescência quando eu descobri o cinema Xploitation, vi que existiam produções ousadas e extremas no mundo inteiro, inclusive no Brasil graças à nossa saudosa Boca do Lixo, gênero onde há uma liberdade criativa que eu não imaginava existir no cinema até então.
Leonardo Caprara: Poderia nos citar todas suas produções?
Julio Wong: O meu início na carreira se deu de uma forma que eu jamais aconselharia para ninguém: me meti a levantar e dirigir um curta-metragem antes de ter qualquer experiência, ou formação em produção e mercado audiovisual. O filme é o Sobrecarga Linha ( http://youtu.be/lt-jW07i8R8 ), rodado em 2008 e finalizado em 2009, uma comédia de humor negro sobre um trote que simula sequestro, fenômeno comum do cotidiano naquela época. Eu gosto bastante do resultado, principalmente por saber que eu não tinha experiência, mas vi que não estava pronto enquanto diretor.
Eu não tive oportunidade de cursar uma faculdade de cinema, mas tinha feito alguns contatos com o curta e consegui chances de participar de outros trabalhos. Ainda em 2009 fui estagiário no programa de TV “Excede”, dirigido por Fabrício Cavalcanti, e fiz o making of e revisão de roteiro na web-série “O Legado” dirigida por Fabiano Moura. Também fiz trabalhos bem legais com Liz Marins. Daí em diante foram várias experiências em making of de publicidades e episódios pilotos até eu me sentir preparado para dirigir outro curta, que é o Mal Passado.
Atualmente eu trabalho com teatro, sou roteirista de uma peça de ventriloquia para adultos chamada Bonecomédia. A peça é estrelada por Warley Santana, um grande parceiro para quem eu escrevo já há alguns anos e dirigida por Mara Carvalho. Tenho pesquisado o mundo da ventriloquia tanto quanto o cinema Xploitation ultimamente, cheguei inclusive a ir aos Estados Unidos em uma convenção para ventríloquos como parte da pesquisa para esse trabalho.
Leonardo Caprara: Na sua infância e adolescência, quais os filmes que mais lhe marcaram e lhe moldaram para o diretor que viria a ser?
Julio Wong: De longe o filme que mais marcou minha vida é o Kill Bill, do Tarantino. Foi a obra que me iniciou no cinema, eu não tinha muito gosto nem interesse cinematográfico a não ser por filmes de ação da moda ou adaptações de quadrinhos antes de ver essa produção. Me tornei cinéfilo no momento em que encontrei na internet uma lista de quase uma centena de filmes de várias partes do mundo que construíram o emaranhado de referências de Kill Bill, filmes de vingança, kung fu, samurai, terror italiano e tudo mais. Meus primeiros anos de cinefilia foram basicamente encontrar e assistir esses filmes (o que foi bem difícil, visto que a maioria nunca foi lançada oficialmente no Brasil e não era tão simples fazer downloads na época).
Desde então mantenho uma consideração muito especial por descobrir tranqueiras cinematográficas garimpando VHS’s em Sebos, um dos filmes que mais revi na vida que é “Os Clones de Bruce Lee”, uma obscura obra-prima de um subgênero conhecido como Bruceploitation, que engloba filmes estrelados por covers do Bruce Lee após sua morte. O filme “Clones…” em questão reúne cinco deles no elenco.
Outros filmes que me marcaram, e não posso deixar de citar, foram “El Topo” de Alejandro Jodorowsky, “Battle Royale” de Kinji Fukasaku, “Os olhos sem rosto” de Georges Franju e claro, “O Massacre da Serra Elétrica” de Tobe Hooper (principalmente a parte 2).
Leonardo Caprara: Como você enxerga o mercado do cinema dentro do nicho do terror no Brasil? Acredita numa popularização do trash?
Julio Wong: Enfim está se criando um mercado! O cinema de nicho no Brasil não teve muita expressividade e força desde o início dos anos 90 com o fim da Boca do Lixo no plano Collor. Desde então os poucos guerreiros que permaneceram produzindo não tinham como alcançar o público.
Hoje temos as mostras de cinema alternativo e, principalmente, a difusão da Internet que facilita muito aos fãs do gênero encontrar (legalmente ou não) os filmes que querem ver, e até entrar em contato com os diretores e produtores. O terror e o Xploitation em geral nunca serão grandes e populares como as comédias da Globo Filmes pois são feito para outro tipo de público: mais alternativo, underground e seleto. Esse público é amplo, fiel e persistente, está sempre interessado em ver novas produções, mas não é a grande massa consumidora e portanto não é atendido pelas distribuidoras tradicionais.
Os países que possuem uma produção forte de terror e de trash, sempre mantiveram publicações e lojas especializadas, que pudessem atender esse público e fazer essa ponte para a distribuição dos filmes, e isso antes da internet! No Brasil essas iniciativas (revistas voltadas ao gênero como a Cine Monstro, distribuidoras especializadas como a Dark Side) ainda não se sustentam financeiramente pois não está consolidado e difundido para nós como um mercado.
Os brasileiros fãs do terror são carentes em estrutura de distribuição e venda. Mas agora está acontecendo esse movimento, independente e online, como as lojas virtuais e sites de conteúdo especializado como o Boca do Inferno e o Música e Cinema, o fortalecimento deste espaço é uma grande possibilidade de unir o público e possibilitar a existência de um mercado futuramente.
Leonardo Caprara: Quais diretores mais lhe inspiraram?
Julio Wong: Basicamente os guerreiros que se atrevem a realizar um cinema de gênero, ou autoral em países onde nem sequer existe uma cultura de cinema mainstream estabelecida. Obviamente o José Mojica Marins, que realizou um conjunto de obra que o destaca no cinema mundial, mas há também diversos batalhadores brasileiros que hoje injustamente não são tão lembrados, como Tony Vieira e Francisco Cavalcanti, que realizaram incríveis westerns e filmes policiais na Boca do Lixo. E além do pessoal da Boca, há outros realizadores que construíram cinematografias coerentes e de respeito, como Carlo Mossy e Ivan Cardoso.
No cinema internacional eu aprecio o trabalho de Alejandro Jodorowsky, um chileno que realizou algumas das obras mais ousadas da história do cinema em condições altamente adversas, a história dos bastidores de “El Topo” inspira qualquer um que tenha vontade de realizar cinema, mesmo em condições impossíveis.
Leonardo Caprara: Você está lançando o curta-metragem Mal Passado, que conta com a participação de ícones como José Mojica Marins e Marcelo Marrom. De onde surgiu a ideia para o roteiro e como as coisas se desenrolaram?
Julio Wong: O Mal Passado é uma questão pessoal de provação. No meu curta anterior a ideia básica era realizar algo minimalista e despretensioso por conta de não possuir experiência alguma em cinema. Após passar tantos anos se preparando para dirigir de novo, com mais recursos e mais experiência, eu queria fazer justamente o contrário, descobrir qual o máximo que eu conseguiria realizar em um curta-metragem.
A melhor forma que encontrei para fazer isso foi prestar um tributo para tudo o que me marcou e influenciou cinematograficamente até então. Escrevi um roteiro homenageando o Massacre da Serra Elétrica e com uma porção de referências espalhadas pelos diálogos e pelas cenas, o cinema Xploitation mundial eu só conseguiria homenagear nesse nível ideológico, mas o Xploitation brasileiro me permitia uma homenagem mais próxima.
Nesses poucos anos de carreira, eu tive a oportunidade de trabalhar com meus ídolos do cinema brasileiro, e conhecia outros graças à mostras e cineclubes. Só faltava saber se eles topariam colaborar em um curta-metragem, o que para a minha surpresa eles não só aceitaram, como se dedicaram ao máximo para me entregar o melhor resultado. E assim consegui realizar o sonho de ter uma mesa de canibais composta por astros da nossa cinematografia cult nacional, não é um sonho muito comum de se ter, o que torna sua realização ainda mais improvável…
Quanto ao Marcelo Marrom, eu estava realizando uma homenagem ao Massacre da Serra Elétrica e tinha essa mesa canibal. Eu precisava de um Leather-Face à altura. Ele é a essência da mitologia do Massacre, mas sua contra-parte no Mal Passado (Meat-Face) possui um papel inexpressivo no roteiro, quase uma figuração. Para que funcionasse, para que ele tivesse alguma chance de se destacar no meio desse elenco, o personagem precisava de um intérprete tão inusitado quanto.
Na época eu trabalhava com um grupo de Stand Up, o comédia Canibal, e também estava ajudando o Marrom em um projeto dele. Quando eu o convidei ao curta ele disse que não era ator e não daria conta dessa responsa. Mas eu expliquei sobre o Leather-Face e disse que não se tratava de uma atuação convencional e ele curtiu a ideia. Aproveito aqui para agradecer a Rubens Mello, um dos canibais presentes, que o ajudou o Marrom a construir o Meat-Face, que como você pode ver no filme, rouba a cena.
Leonardo Caprara: Você esperava toda essa recepção e aclamação que o curta-metragem está tendo, inclusive recebendo prêmios?
Julio Wong: Eu já não estava muito empolgado pois o curta foi finalizado quase dois anos depois de ter sido rodado (em 2011). Foi uma pós produção bem demorada por conta de imprevistos e outros trabalhos em que eu estava envolvido na época. Aliás, todo o processo de produção foi tortuoso, enfrentamos incêndios e vizinhos que atacavam o nosso set com mangueiras e bombas (!). Enfim, não foi a produção mais tranquila, e portanto a expectativa andava em baixa. O pessoal envolvido já havia até desistido de cobrar pra ver ele pronto… Então a própria finalização do filme já é digna de celebração, com essa recepção e aclamação mais ainda!
Leonardo Caprara: Após esse sucesso atual, quais são seus planos para a carreira?
Julio Wong: Nesse ano em específico eu estou ocupado com o Bonecomédia, pois vou acompanhar a peça por várias cidades Brasil adentro na turnê nacional, em paralelo terei as exibições do Mal Passado nos festivais em que ele já foi aceito. Eu pretendo fazer um longa agora, mas ainda estou buscando a ideia, o roteiro certo, então deve demorar alguns anos…
Leonardo Caprara: Qual a importância do apoio de cineastas consagrados como Mojica, Rodrigo Aragão e outros?
Julio Wong: O trabalho de um diretor é bem puxado, desafiador, e poucos entendem sua complexidade. Por isso é essencial contar com o apoio e a troca de experiências com outros diretores. Eu já tinha bastante contato com os cineastas de São Paulo, mas o Mal Passado me proporcionou a chance ir em festivais como e conhecer e poder ter essa experiência com gente de fora de outros estados, que eu só conhecia pelos filmes, como o Rodrigo Aragão e o Petter Baiestorf.
Não há nada melhor do que conversar de cinema (tanto enquanto experiência profissional, quanto como experiência cinéfila) com quem sabe como é passar pelos mesmos processos. Esse convívio gerou duas frases que me marcaram e que vou guardar pelo resto da vida: a primeira, enquanto eu rodava o Mal Passado, e todo um circo se formava com a vizinhança incomodada pela minha cena da motoserra rodada de madrugada, o Mojica depois de se oferecer para conversar com os policiais presentes e acalmá-los, me diz “nos anos setenta, você estaria preso!”. E a outra, no Fantasnor, após assistir o Mal Passado, o Rodrigo Aragão simplesmente me diz “Meu, você é perturbado, hein?”.
Leonardo Caprara: Em 2014, o que você destaca para os cinéfilos brasileiros?
2014 é um ano bem especial aos cinéfilos brasileiros, primeiro pois é muito difícil ver dois filmes de terror nacionais tendo oportunidade no circuito, como é o caso agora de “Mar Negro”, do Aragão e “Quando eu era vivo” de Marco Dutra. E também porque podemos ver outro diretor brasileiro conseguindo levar sua assinatura para um filme de Hollywood, José Padilha com o “Robocop”.
No cinema internacional estou bem curioso em ver a terceira parte de “Centopéia Humana”, de Tom Six, que é na minha opinião a mais ousada franquia de terror do cinema contemporâneo, principalmente por não ter medo de se reinventar à cada filme, sem se limitar em fazer continuações repetitivas.
E como um bom fã de quadrinhos estou curioso também pelo “X-Men: Dias de um futuro esquecido”, pois depois de mais de uma década com incessantes filmes baseados em quadrinhos, Hollywood finalmente se atreve a explorar o lado mais ousado desse universo, com viagens no tempo e realidades paralelas.
Leonardo Caprara: Obrigado pela oportunidade Julio, agora deixe um recado para os leitores do Música e Cinema:
Julio Wong: Faça o que fizer, nunca ligue uma motoserra às três da madrugada em uma gráfica sem isolamento acústico com condomínios em volta.
Júlio Wong vai longe! Parabéns ao diretor e à iniciativa do site de entrevistá-lo para sabermos mais sobre a trajetória deste talentoso jovem diretor.